18.7.21

Analisando a música feat. Book Report - Penny Lane (The Beatles) e O Homem que viu tudo (Deborah Levy)

Muitas músicas são inspiradas por livros, inclusive fiz um post com 5 dessas músicas. Até fiz um Analisando a música especialmente para Wuthering Heights da Kate Bush usando passagens do livro (O Morro Dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë).

O contrário não acontece muito. Tentei lembrar de livros que li que foram inspirados por alguma música e só lembrei de Norwegian Wood do Haruki Murakami, inspirado na música de mesmo nome dos Beatles, High Fidelity do Nick Hornby que usa várias músicas em sua história e Os Tais Caquinhos da Natércia Pontes que usa a música da Marina Lima. 

Gosto quando autores mencionam músicas nos livros mesmo que não tenham sido a inspiração principal mas que servem a história. Li um livro que a autora fez uma lista especial no Spotify com uma música para cada capítulo, a playlist era melhor que o livro mas adorei a idéia.

Semana passada terminei de ler O Homem Que Viu Tudo da Deborah Levy. Comprei esse livro pela capa que tem uma promessa de fofoca e não me arrependi, gostei da história do Saul Adler.

Berlim na capa


O livro faz várias referências ao disco Abbey Road dos Beatles (de 1969) e também a música Penny Lane (que foi lançada em 1967 como um single junto com Strawberry Fields Forever). O livro é um quebra cabeça que faz você juntar as peças para entender (ou não) o que aconteceu com Saul Adler e muitas peças vem da música dos Beatles.

do lado de dentro da capa tem
essa foto da Abbey Road


Para fazer esse Analisando a música feat. Book Report vou dar alguns SPOILERS do livro. Avisei.

É um livro que tem muitas ambiguidades e a história de Saul se passa na fronteira delas pisando lá e cá: oriente/ocidente, feminino/masculino, passado/presente, capitalismo/comunismo, realidade/fantasia, amor/abandono, vida/morte.

O livro tem duas partes, uma em 1988 e outra em 2016. A parte de 2016 tem momentos de 1988 e vice versa. A autora disse que queria que uma parte fosse um espelho da outra.

É sobre como os outros nos vêem e a imagem que temos de nós mesmos, sobre memória, o que guardamos e como lembramos e sobre alguns fantasmas.

Em 1988 Saul Adler vai fazer uma pesquisa em Berlim Oriental, ele é um historiador, mas, antes de ir, sua namorada, Jennifer, teve a ideia de tirar uma foto dele atravessando a Abbey Road e levar para irmã do seu tradutor que é fã dos Beatles. Antes de Jennifer chegar, Saul atravessa Abbey Road e é atropelado de leve por um homem chamado Wolfgang. Jennifer chega com uma escadinha para tirar a foto (igual o fotografo original da capa do disco) e Saul Adler vestido com um terno branco igual John Lennon atravessa a rua para a foto.

Aqui tem várias referencias diretas a capa do disco Abbey Road. Inclusive tem várias músicas desse disco que podem ser usadas em momentos do livro: Oh, Darling, Come Together, Because, She Came Through the Bathroom Window, The End e I Want You. 
Quanto a capa do disco, tem uma teoria que Paul McCartney está descalço porque ele estaria morto (aos 28 anos, que é a idade do Saul Adler em 1988), então, na ordem, John Lennon de terno branco é o anjo, Ringo de terno preto é o agente funerário, Paul descalço (e com cigarro) é o defunto e George Harrison é o coveiro. Essa teoria cabe na história do livro.


Saul Adler é o narrador de toda a história e não devemos confiar nele, mas ele nos diz que é muito bonito e que Jennifer sempre o observa através das lentes de sua câmera. Jennifer faz uma arte com colagens das fotos dele. Saul usa um colar de pérolas que foi de sua mãe, que faleceu num acidente de carro, e que seu pai e seu irmão o sacaneavam por usar o colar. O pai de Saul era um comunista raiz e Saul quer levar um pouco de suas cinzas para enterrar na Alemanha Oriental.

Saul Adler pede Jennifer em casamento mas ela recusa e diz que recebeu uma oferta para estudar e expor suas fotos nos EUA. Saul vai embora arrasado (Jennifer tira uma foto dele saindo), vai até os estúdios da Abbey Road e senta no muro. Chega uma moça de vestido azul (referência ao verso capa do disco Abbey Road) eles tem uma conversa, se beijam e ela vai embora, mas nas costas dela diz que ela é uma enfermeira.



Saul recebe as fotos e vê que está descalço igual Paul McCartney mas não lembra de tirar os sapatos, depois ele vai até o supermercado e na volta dizem que seu prédio está pegando fogo mas ele não vê fumaça. Ele liga para Jennifer para dizer que os bombeiros estão em greve.

Chegando em Berlim Oriental, Saul conhece seu tradutor, Walter Muller, e ficam amigos. A irmã beatlemaníaca de Walter se chama Luna, ela é enfermeira, e Saul tem todo um pensamento de como os oficiais da Stasi deixam as músicas dos Beatles passarem na censura. Saul é apresentado a Rainer, um conhecido de Walter que consegue as coisas do ocidente.

Saul e Walter vão passar um fim de semana na casa de campo e ficam juntos. Saul se apaixona por Walter e escreve uma carta se declarando. Depois fica preocupado da Stasi ter lido, ele sente que é observado.

Luna convida Saul para a casa de campo, ele vai, e os dois se divertem escutando Abbey Road. Luna diz que seu sonho é conhecer Penny Lane, e canta a música para Saul. Luna quer fugir da Alemanha Oriental e ser enfermeira em Liverpool. Saul conta para Luna que em novembro de 1989 o muro vai cair. Os dois acabam transando e Luna diz que agora Saul tem que casar com ela e a levar para Londres, mas ele quer levar Walter. Saul quebra o disco Abbey Road de Luna.

Saul dá dinheiro para Rainer poder passar Walter para o lado ocidental e decide ir embora. Quando ele vai se despedir de Walter, o tradutor diz que não quer sair da Alemanha Oriental, que é feliz lá, diz que é casado e tem uma filha e que Rainer é agente da Stasi. A última imagem que Saul tem de Walter é de uma kombi da Stasi o levando.

Pula para 2016. Saul Adler é atropelado por um homem chamado Wolfgang ao atravessar a Abbey Road. Wolfgang pergunta a Saul quantos anos ele tem e Saul diz "28." no que Wolfgang faz uma cara alarmada. Saul cai sobre o quadril, perde os sapatos no impacto e é levado de ambulância para um hospital.

Em 2016 o pai de Saul está vivo e o visitando no hospital. Jennifer agora tem 51 anos, é uma fotografa famosa e também está ao seu lado. Saul acha que acabou de voltar da Alemanha Oriental mas se passaram 28 anos e ele teve uma hemorragia interna, tiraram parte do baço dele numa cirurgia e está em processo de septicemia. E seu médico se chama Rainer.

O Saul de 2016 tem delírios que está em 1988 e também momentos de lucidez onde ele consegue lembrar das pessoas e eventos nos anos entre 1988 e 2016. 

Cabe a nós, leitores, usarmos as informações de Saul para entendermos o que aconteceu entre 1988 e 2016.

Agora vamos ao que interessa: a música e o livro.

Penny Lane é uma música que já nasceu nostálgica. Fala de uma rua em Liverpool onde Paul McCartney, George Harrison e John Lennon passavam com frequência. John e Paul compuseram essa música em 1967, depois de muito famosos, usando lembranças que tinham da rua.

A música é como se fosse uma pessoa contando como era a rua, inclusive usa a palavra "meanwhile" algumas vezes que significa: Enquanto isso em Penny Lane... 
A música também tem suas ambiguidades, tem sol, tem chuva, é verão mas é perto do inverno. É uma memória de um lugar e de um tempo, pode vir acompanhada de sonhos, de cores e misturada a outras lembranças.


Penny Lane there is a barber showing photographs
Of every head he's had the pleasure to know
And all the people that come and go
Stop and say "Hello"

A música não tem uma introdução e já começa nos contando que em Penny Lane tem um barbeiro que gosta de mostrar fotos das cabeças que conheceu e que todos que passam, param e dizem "Oi".

No livro claro que Saul Adler vai num barbeiro. Ele vai fazer a barba e lavar o cabelo para encontrar Walter em Berlim. 
Todas as pessoas que ele conheceu estão passando por sua memória e no hospital todos que passam (as enfermeiras, a moça da comida, o médico, familiares e amigos) param para falar com ele.

On the corner is a banker with a motorcar
The little children laugh at him behind his back
And the banker never wears a mac
In the pouring rain, very strange

Seguimos com o banqueiro que tem um carro, as criancinhas riem dele. O banqueiro nunca usa uma capa de chuva enquanto chove. Muito estranho. 

Wolfgang, o homem que atropela Saul Adler é o banqueiro com o carro. Quando visita Saul no hospital, Wolfgang diz que trabalha com fundo de investimentos. E, segundo Saul, Wolfgang sabe que tem culpa pelo acidente mas quer que Saul diga que não foi culpa dele. 
O negócio é o seguinte Saul Adler: é tudo muito estranho mesmo.

Penny Lane is in my ears and in my eyes
There beneath the blue suburban skies
I sit, and meanwhile back

Penny Lane está em todos os lugares. Assim como a Stasi em Berlim Oriental era os olhos e ouvidos que controlava a população. 

Penny Lane também está em todas as lembranças que ate em um dia de céu azul o narrador senta e lembra que Enquanto isso em Penny Lane....

In Penny Lane there is a fireman with an hourglass
And in his pocket is a portrait of the Queen
He likes to keep his fire engine clean
It's a clean machine

...Tem um bombeiro com uma ampulheta e no seu bolso uma foto da Rainha. Ele gosta de manter seu motor limpo, é uma máquina limpa. Palmas para a rima com piadinha tio do pavê de John e Paul.

Quanto a Saul Adler, no livro tem um incêndio falso e bombeiros que nunca aparecem para apagar o fogo porque Saul acha que eles estão em greve.
E tem a ampulheta que indica o tempo restante. Saul Adler, o tempo está acabando.

Curiosidade: Depois dessa estrofe tem um solo de trompete piccolo que Paul McCartney disse que foi uma exigência dele ter esse instrumento na música depois que ele viu numa apresentação de uma música do Bach. Sir George Martin deu um jeito.

Penny Lane is in my ears and in my eyes
A four of fish and finger pies
In summer, meanwhile back

Penny Lane continua habitando todas as lembranças. O narrador da música está comendo um fish and chips e fazendo mais sei lá o que no verão, mas Enquanto isso em Penny Lane...

Behind the shelter in the middle of the roundabout
The pretty nurse is selling poppies from a tray
And though she feels as if she is in a play
She is anyway

Atrás do abrigo no meio da rotunda tem uma enfermeira bonita vendendo botões de papoula em uma bandeja. Ela acha que está em uma peça de teatro e está mesmo.

Se o narrador no refrão estava no verão, em Penny Lane essa enfermeira está perto do inverno porque as papoulas geralmente são de papel e vendidas em novembro perto do Armistice Day e estão ligadas aos soldados feridos e mortos na Primeira Guerra.

No livro temos a enfermeira de vestido azul que ele encontra no muro dos estúdios de Abbey Road e Luna, irmã de Walter, que também é enfermeira e quer fugir da RDA para Liverpool. Luna odeia a RDA, ela se sente controlada (como numa peça?) e com medo o tempo todo. 

In Penny Lane the barber shaves another customer
We see the banker sitting waiting for a trim
And then the fireman rushes in
From the pouring rain
Very strange

E voltamos para o barbeiro que está fazendo a barba de um cliente. O banqueiro também está lá esperando e o bombeiro entra afobado porque chove muito lá fora. Very Strange. Muito estranho mesmo.

Aqui a música volta lugar de início, como o livro que volta ao lugar do acidente anos depois. Três dos quatro personagens da música estão reunidos: barbeiro, banqueiro e bombeiro. A enfermeira continua dentro da peça de teatro, ela fica ausente dessa reuniãozinha.

No hospital Saul tem a visita de Jennifer, de seu pai, seu irmão e Jack (um amigo/amante). Walter ainda está na Alemanha e Luna desapareceu.

Penny Lane is in my ears and in my eyes
There beneath the blue suburban skies

Penny Lane

Mas Penny Lane continua lá, nos olhos e nos ouvidos, ocupando a memória, a nostalgia, o passado e presente misturados.

No fim Saul Adler quer tirar outra foto atravessando Abbey Road. "And in the end, the love you take is equal to the love you make"





Gosto muito dessa música. Já estive em Liverpool e fui a Penny Lane com um tour que apontava todos os lugares da música.

Também já estive em Abbey Road, mas estava só e não consegui uma foto minha atravessando a rua.

Quando terminei o livro escutei a música com mais atenção. De primeira o que me pegou foi o "Very strange" da música porque as coisas acontecem e o próprio narrador acha estranho, como no livro, depois foi isso de passado e presente. Dei uma relida rápida no livro, vi que tinha mais coisas relacionadas e rendeu esse post.

Gostei do livro. Não foi um 5 estrelas, dei 4 e entrei no jogo das referencias dos Beatles.


2 comentários:

  1. Olá Kaká! Uau, é a segunda análise sua que leio e fico assim, encantada, meio abobada. A verdade é que muito gostoso ler bons conteúdos e que felicidade a minha encontrar esse blog. Parabéns, menina sabida!

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